Não é de hoje que o aborto confunde até as mais nobres mentes humanas. Aristóteles (384 a.C.), filósofo grego, mestre de Alexandre o Grande, já se posicionava como defensor desta prática. Propunha uma espécie de eugenia, selecionando casos com possibilidade de extermínio do feto antes da formação de sua alma, o que se acreditava surgir por volta do 40º ou 80º dias de concepção, dependendo se feminino ou masculino, respectivamente. Talvez tivesse herdado este raciocínio de seu professor, Platão (348 a.C.), que, compreensivelmente enxergava o ser humano com o prisma intelectual de sua época, elucubrando sobre limites temporais relativos a formação in personae da alma, como se isso fosse possível estabelecer cientificamente.
Não só os seculares admitiam o aborto. Sabemos que uma das mais
brilhantes personalidades da Igreja, Santo Agostinho (354 a.C.), também
considerava aceitável o aborto nos casos de fetos antes da constituição
de sua alma. O Direito Canônico, porém, logo corrigiu este desvio
teológico e passou a condenar o ato incondicionalmente.
Nos dois primeiros meses de gestação, o aborto é chamado de ovular, no
terceiro e quarto meses, embrionário e daí em diante denomina-se fetal.
No mundo jurídico, não há consenso mundial quanto ao tema. Os E.U.A, a
França, a Holanda, a Índia, a Itália, o Japão, e a Rússia são exemplos
de países que permitem o aborto. Já o Afeganistão, o Brasil, o Irã, a
Irlanda, o Líbano, a Líbia e outros tipificam-no como criminoso.
Excetuando os casos de Aborto Necessário ou Terapêutico (art 128, I CP)
e Humanitário ou Sentimental (art 128, II CP), o Brasil, agora, com o
novo entendimento do Supremo Tribunal Federal, passa a descriminalizar
um outro tipo de interrupção da gestação, a eugênica. Sim, eugênica,
pois, com o mesmo critério dos espartanos, decreta-se a morte dos fetos
com anomalias, alegando impossibilidade de sobrevida dos anencéfalos.
A palavra anencefalia significa “sem encéfalo”, sendo encéfalo o
conjunto de órgãos do sistema nervoso central contido na caixa craniana.
Ocorre em 0,1% na população mundial, mais comum no sexo feminino.
Estudos mostram que 25% das crianças anencéfalas que vivem até o fim da
gravidez morrem durante o parto; 50% têm uma expectativa de vida de
poucos minutos a 1 dia; 25% vivem além de 10 dias.
Pois bem, há algumas questões relevantes a serem consideradas sobre o
assunto. Abordarei os detalhes médicos, primordialmente. Hoje, em nossa
sociedade, vivemos uma onda de denuncismo que alguns denominam mesmo
como "Indústria da Indenização", onde, pelo espectro de manto da Justiça
Social consagrada pela Constituição Cidadã de 1988, em seu art 5º,
XXXV, temos que a ninguém é negado o acesso à Justiça (a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito).
Essa liberdade pode gerar consequências gravíssimas se mal utilizada. Na
verdade, o exercício maléfico de um direito pode ser pior que uma
ditadura. Pode insurgir um excesso de procedimentos como este, sem a
devida indicação clínica.
Sabemos que não existe nenhum aparelho de exame médico perfeito. Mesmo
as mais sofisticadas e modernas máquinas são passíveis de falhas. Isso é
peculiar do ser humano. Claro que, com o desenvolvimento da tecnologia,
percebemos um grande avanço na acurácia dos resultados. Hoje, podemos
vislumbrar cirurgias delicadas realizadas em tempo real através de
robôs. Não, não é mais ficção científica! Mas não devemos cair na mesma
tentação de Ícaro, sob o risco de assassinarmos milhões de inocentes.
Esta aventura jurídica pode nos levar a um catastrófico fenômeno de
seleção artificial de seres humanos. E, com certeza, a natureza e Deus
saberão retribuir.
Apesar de muito aprimorado atualmente, o diagnóstico das malformações
fetais, tanto genético, dosagem de alfafetoproteína (exame realizado na
mãe e analisa a quantidade excretada desta substância pelo feto no
líquido amniótico), tanto como por imagem, podem errar.
Estatisticamente, são pequenas as ocorrências, contudo, quando incidem,
pelo menos para a família, números não interessam. O risco se
materializa e deixa de ser uma possibilidade.
Logo, imaginem um caso fatídico onde o Ultrassom realizado por um
médico experiente (que nem sempre o é), com um aparelho de última
geração, que identifique e confirme um caso de anencefalia. Então,
através deste laudo, repetido por mais dois profissionais competentes,
formados pelas melhores escolas de Radiologia do Brasil, com mestrado e
doutorado na área, realize-se o aborto, agora respaldada pelo STF.
Ocorre que, ao induzir a expulsão fetal por medicamentos, deparemo-nos
com um feto perfeito!!!!! Algo QUASE impossível de acontecer ACONTECE!
E agora, José? Nem Carlos Drumond poderia prever um dilema deste em seus contos.
Mas, perfeitamente factível, inevitavelmente um dia surgirá nas
manchetes dos jornais. Um desastre referendado pela Corte maior do nosso
Judiciário que, embora conhecendo a real limitação de nossa medicina,
ainda mais a ofertada na Saúde Pública, pelo falido SUS (Sistema Único
de Saúde), passa a condenar previamente, tanto os fetos e famílias
vítimas destas lacunas da natureza, como os coitados dos médicos que
tiverem a infelicidade de fazerem um diagnóstico falso de anencefalia,
claro, orientados pelos instrumentos que dispuserem no momento do
exame.
Ora, caro leitor, vejamos a situação dos nossos hospitais públicos! A
maioria trabalha em calamidade. Os aparelhos de ultrassom, se existirem,
são de 3 (três) décadas de fabricação! Sucateados! Como exigir um
diagnóstico confiável do operador?
Diante dessa cena trágica, só tenho certeza de uma coisa: o único a ser
responsabilizado penal e civilmente será o infeliz do
ultrassonografista. Nem o STF, nem o Procurador Geral da República, nem a
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que entrou com a
ADPC 54(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54), nem
mesmo o Conselho Federal de Medicina, ninguém participará da defesa
deste mártir. Este homem será execrado e terá que abandonar a cidade
onde trabalha ou mesmo a própria carreira de Hipocrates (Pai da
Medicina, 377 a.C.), se não pagar com a própria vida pelo desastre!
É, a realidade é terrível. Além do problema filosófico e teológico que
abarcam o tema, o aspecto jurídico da questão é profunda. Não apenas em
relação ao questionamento da certeza do laudo médico da anomalia, mas em
relação ao Direito à Vida, direito este personalíssimo do nascituro,
que ninguém pode dispor em seu lugar.
Algo mais emblemático, então, surge na discussão: a partir de quando,
conquistamos a personalidade civil e tudo o que dela se depreende? Daí,
temos basicamente três teorias que tratam do assunto no Brasil: a
Natalista (que prevê a personalidade civil estritamente mediante o
nascimento com vida), a Concepcionista (assume uma visão mais alinhada
com a religiosa, onde entende que o ser humano existe a partir da
concepção) e a Teoria da Personalidade Condicionada, onde só admite tal
peculiaridade ao feto que nascer com vida.
Humanisticamente, com o aval de um dos mais respeitados juristas do
Brasil e do mundo, Ives Gandra da Silva Martins, penso que a Teoria
Concepcionista é a mais correta, senão vejamos. Como identificar um
ponto dentro da evolução do produto uterino como sendo o início de sua
vida, a não ser desde o momento da fecundação seguida de implantação no
útero? Alguém poderia afirmar com certeza este momento? Assim como não
podemos afirmar que uma criança não é gente e, assim, digna de direitos,
também não podemos dizer que o embrião de 10 semanas ainda não tem
personalidade civil ou não tem alma como o queria Aristóteles!
Se o feto nascer com a anencefalia, o evento já será de per si
horrível. Mas se, ao invés de doente, for abortado um feto sadio,
baseado na confiança de um laudo de imagem, as consequências desse fato
serão inimagináveis... Por menores que sejam os riscos, depois de
ocorrido, o erro é irreversível! Não seria mais prudente e humano deixar
a natureza andar com suas próprias pernas e levar a termo esta
gravidez?
Se ponderarmos que a falha diagnóstica é irrisória e, por isso,
poderíamos assumir o aborto, mais rara ainda é a incidência desta
anomalia genética em escala mundial! Como supracitado, uma em cada mil
gestações. Outra consequência desastrosa poderia ser também a
banalização do aborto e a sua liberação para todos os casos de
malformações.
Com que autoridade condenaríamos as atitudes antissemitas de
Hitler? Estamos caminhando certamente para a Democracia. Teremos, porém,
que reconhecer os limites que esta situação nos impõe, sob pena de
chegar muito perto do sol, como o fez o herdeiro desobediente de Dédalo e
derretermos a cera das asas de nossa imaginação, sucumbindo os nossos
próprios filhos!
Dr Ézio Ojeda
Advogado e médico
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